Marllus
Marllus Cientista da computação, doutorando em educação, mestre em políticas públicas, professor, poeta, escritor, artista digital e aspirante a tudo que lhe der na telha.

Relatório de viagem técnica - agroecologia

Relatório de viagem técnica - agroecologia
Acervo do autor. Sítio do Nazareno. Guaraciaba do norte - CE

Pouco profundos, mal drenados, textura arenosa/argilosa, média a baixa fertilidade natural e alto teor de sódio. Os Planossolos entre Fortaleza e Sobral, intervalo percorrido no início da viagem, trazem à tona tanto os Carnaubais, encontrados a partir do município de Caucaia, como queimadas constantes que puderam ser vistas à beira da estrada. Durante o percurso, em trechos próximos aos municípios de Irauçuba/Itapajé, pôde-se perceber o estilo de vegetação pouco arbórea, abundantemente arbustiva e herbácea do tipo “barba de bode”. Apesar do clima desértico e pouca cobertura de solo, é notável a tentativa de produtores de não desistirem da luta diária com sistemas cultivados e criação de animais (caprinos, ovinos e bovinos), os quais foram evidenciados em todo o trecho ao longo da viagem. Sejam sistemas convencionais ou sustentáveis de produção de alimentos, conforme Euclides da Cunha, “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”.

A primeira visita técnica da viagem foi na Embrapa Caprinos e Ovinos, em Sobral-CE. Lá, foi concebido pelo então Prof. Dr. João Ambrósio um experimento de longa duração (desde 1997), que se constituiu de um sistema agrossilvipastoril. O sistema funciona até hoje, porém, os manejadores (funcionários contratados) estão em escassez por dificuldades financeiras da própria empresa e, nas palavras de um dos engenheiros agrônomos da instituição, está “meio largado”.

O referido sistema visitado foi concebido como uma alternativa à produção tradicional na caatinga e em outros biomas, que se constitui no ciclo: queima, plantio, pousio. Um dos pontos extremamente negativos desse sistema tradicional, principalmente no bioma onde está inserida esta unidade da Embrapa é a questão do aspecto do solo, pois, sendo um luvissolo, tem característica de profundidade limitada, seja por um horizonte B textural, seja pela presença de rocha com saturação, e são, em essência, solos mais suscetíveis à degradação física (que também é uma piora da degradação química), como por exemplo erosão em sulcos por uma maior concentração de água ou laminar, consequência da retirada de matéria orgânica da superfície pelo método tradicional de cultivo.

O sistema foi proposto através da divisão da área total e três parcelas, uma delas constituiu-se em um subsistema agropastoril, a segunda em um silvipastoril, através da manipulação da caatinga e a última também em um silvipastoril, pelo uso de um lote florestal. Há a integração entre as áreas, inclusive com rotação e os animais, predominantemente caprinos, realizam um importante papel na ciclagem de nutrientes (N) do solo. Esse tipo de utilização de energia é relatado no capítulo 18 do Gliessman (A energética dos agroecossistemas) como aportes culturais biológicos, onde se tem a utilização de aportes de energia de origem humana e de animais.

Foram observadas no sistema várias tentativas no combate à erosão e desgaste do solo, como a utilização da cobertura vegetal fruto do raleamento e rebaixamento da caatinga em forma de coivaras, colocadas perpendicularmente ao movimento das enxurradas; a incorporação de cobertura morta de Leucena ao solo (também para fixação de N), e também percebeu-se, ao longo do percurso às unidades demonstrativas, tijolos dispostos em nível perpendicular ao movimento das águas. A utilização da Leucena como espécie predominantemente arbórea se justifica pelo seu rápido ciclo e alta produção de biomassa. Todos esses pontos estão relacionados aos benefícios dos sistemas agroflorestais (SAFs), demonstrado no capítulo 17 do livro do Gliessman (Perturbação, sucessão e manejo do agroecossistema).

Há também, por último, a etapa de enriquecimento do sistema, que se constitui no cultivo mínimo de espécies herbáceas ou lenhosas, objetivando a preservação do estrato herbáceo nativo, rico em leguminosas forrageiras. Também é realizado o plantio de culturas de grãos, como milho e sorgo para fenação. Apesar de estas últimas serem utilizadas com o objetivo de forragem, o sistema propõe a plantação destas culturas nos anos iniciais de implantação do sistema, com o objetivo de subsistência para parcialmente suprir os custos iniciais de implantação. Este conceito de manejo da sucessão está relacionado ao índice de PPL (Produtividade Primária Líquida) do capítulo 17 do Gliessman, onde a perturbação é reintroduzida no agroecossistema de maneira localizada e controlada, a fim de otimizar a produção de biomassa, levando o sistema a um mosaico de sucessão.

O segundo ponto da viagem foi a uma fazenda/empresa em Ubajara-CE. Reconhecidamente como uma das maiores empresas produtoras de acerola orgânica do mundo, ela coleciona certificações orgânicas de vários países/continentes, como EUA, União Europeia e do próprio Brasil (IBD). É notável o alto controle de segurança física e biológica, desde à chegada da equipe até a saída do ambiente (credenciamento e distribuição de crachás, sala de espera na entrada da fazenda, distribuição de cartilhas com instruções sobre vestimentas adequadas e proibições a cerca de equipamentos pessoais).

O controle fitossanitário também é altamente regulamentado e otimizado. Vários funcionários, incluindo o coordenadores e técnicos agrícola, acompanharam a equipe durante toda a apresentação do processo de produção do sistema. Pôde-se perceber que todo o processo, desde à produção de mudas até a colheita é realizado dentro da fazenda.

O gerente agrícola que acompanhou a equipe durante todo o percurso relatou que a fazenda já havia experimentado outras culturais, como caju, maracujá, maçã e côco para fim de produção de vitamina C, porém, a acerola se mostrou como mais a mais rentável e a empresa acabou adotando essa espécie para produção. Percebe-se, claramente, o nível de conversão desse agroecossistema a partir dos conceitos aprendidos com Gliessman (capítulo 20 – alcançando a sustentabilidade), onde este se encontra no nível 2: Substituição de insumos e práticas convencionais por práticas alternativas.

Neste nível de conversão, como relata o próprio autor, a estrutura básica do agroecossistema não é grandemente alterada e, consequentemente, muitos dos mesmos problemas que ocorriam em sistemas convencionais também ocorrem nestes sistemas baseados na substituição de insumos. Percebe-se a forte utilização de combustíveis fósseis através da utilização de maquinário pesado para colheita e irrigação, em grande maioria importados (o que ainda gera um impacto na economia local). A presença da monocultura de acerola bem como a baixa diversificação genética desta espécie (três variedades) também é uma forte exemplo desse tipo de característica de produção. Há um contraponto a este último, pois todas as variedades foram produzidas localmente, seja em parceria com a Embrapa seja no laboratório da própria empresa, o que acabou gerando uma certa adaptabilidade e correção em nível local (características do nível 3 de conversão).

No que tange à responsabilidade social corporativa da empresa, foi relatado para a equipe que a mesma realiza uma espécie de “apadrinhamento” de produtores locais, fornecendo os insumos necessários para a iniciação da produção de acerola orgânica a fim de distribuição/venda à empresa. Esse sistema de ajuda bilateral é chamado de guarda-chuva. Indagado sobre o aporte financeiro da empresa aos produtores sem recursos e interessados na associação, o gerente agrícola relatou que a empresa fornece financiamentos para pagamento à longo prazo, e relatou que as acerolas nesse sistema são compradas pelo dobro do valor das espécies “de mesa”, vendidas no mercado local, caracterizando, segundo ele, um grande benefício para o pequeno produtor.

Uma das ironias identificadas neste ponto (responsabilidade social corporativa), está no fato de que, pelas palavras do gerente agrícola, “mais de 90% da operação é mecanizada e o maior objetivo da empresa é a redução de custo”, além disso, é perceptível o orgulho gerencial apresentado pelo mesmo em relatar que anteriormente eram contratados 1200 colaboradores para a colheita manual e hoje somente em torno de 20. Então, se o objetivo é atingir metas cada vez maiores de lucro, o valor de responsabilidade social da empresa acaba tendendo mais como resposta somente ao ponto do marketing empresarial sob a estratégia de sustentabilidade do que realmente valores humanos organizacionais. Este fator social é um ponto crucial para o atingimento ou não da sustentabilidade em agroecossistemas em todos os níveis, como demonstrado por Gliessman (Capítulo 21 - Da agricultura sustentável a sistemas alimentares sustentáveis) nos aspectos de equidade, padrões sustentáveis de dieta, autossuficiência e biorregionalismo e desigualdade social.

Apesar de a empresa apresentar um menor nível de impacto ambiental, em comparação aos sistemas convencionais de produção, ela está ainda um pouco fora da curva para o alcance da sustentabilidade defendida por Gliessman, seja por causa dos aportes de energia cultural industrial (não oriundas de fontes renováveis) utilizados desde o semeio à distribuição do produto final para outros países até o baixo comprometimento sob a mão de obra local, evidenciada em seus próprios fins de mecanização empresarial.

Certamente o ambiente com a maior sustentabilidade prática e com efeitos diretos para a cadeia local de produção foi o encontrado no sítio do Nazareno, em Guaraciaba do Norte – CE. O próprio Sr. Nazareno sintetizou sua história de vida para todos os presentes da equipe de estudantes e professor. Foram identificados, em seu discurso, vários conceitos estabelecidos no livro do Gliessman. Como se pode destacar: A insustentabilidade do uso de aportes energéticos culturais industriais, a forma desigual de distribuição e escoamento da produção que não leva em consideração a sazonalidade das culturas produzidas, a falta de planejamento prévio da distribuição dos alimentos, a falta de planejamento em diversificação das culturais ao longo do ano. Todos esses fatores levaram o Sr. Nazareno, antes da produção de orgânicos, em suas palavras, “a quebrar, a falir!”.

Um dos pontos importantes a serem destacados é uma lembrança do Sr. Nazareno, logo após este ter aprendido técnicas de produção agroecológica em meados de 1996, onde o mesmo relata que os princípios ecológicos que acabara de aprender era justamente o que o seu avô havia praticado na região anos atrás (em suas palavras, seu avô juntava “tudo quanto era bagúi (sic) das terras dos vizinhos para colocar em cima do solo antes de plantar, e era ele quem fazia sucesso”). Importante perceber a forte relação com os conceitos de técnicas de seleção massal e agroecossistemas tradicionais/indígenas que ‘sobrevivem ao tempo’, citados por Gliessman durante todo o livro (especialmente no capítulo 20 – Agroecossistemas tradicionais como exemplos de funcionamento sustentável).

O financiamento local através de pessoas físicas ao Sr. Nazareno, logo após o mesmo demonstrar sua capacidade técnica de produção em um reunião no Banco do Brasil, ainda nos anos 90, foi o fator crucial para dar início a sua produção orgânica que hoje conta com uma área de 8 hectares de cultivo e um escoamento para mais de 20 mil pessoas/dia. É interessante notar em seu discurso o posicionamento com relação à defesa de uma forma mais igualitária de distribuição alimentar, onde o mesmo critica o escoamento tradicional (segundo ele, um cultivar pode passar por 5 atravessadores antes de chegar ao cliente final), em que há uma transferência de renda muito maior para os intermediadores do que para base da produção, o agricultor. O capítulo 21 do Gliessman é bem claro no que diz respeito aos agroecossistemas sustentáveis, ao relacionar as condições ecológicas às condições sociais de sustentabilidade.

Um ponto que chamou bastante atenção foi o fato de Sr. Nazareno, ao ser perguntado sobre o porquê de poucas pragas atacarem a produção de seu vizinho “convencional”, responder que o seu cultivo serve como uma “barreira amiga” para a plantação do seu vizinho (mesmo ele não utilizando agrotóxicos, em suas palavras “só joga no chão e espera crescer”). Isso pode ser relacionado com o conceito de vegetação tampão que Gliessman cita no capítulo 16 (Diversidade e estabilidade do agroecossistema), onde está reduz uma gama de impactos potenciais de um sistema sobre o outro bem como aumentam a biodiversidade geral da região (diversidade beta).

O sítio São Francisco (do Sr. Nazareno) é um exemplo de nível 3 de conversão para a sustentabilidade na escala proposta por Gliessman, onde os problemas durante todo o processo são identificados e, portanto, prevenidos através de uma abordagem de desenho e manejo internos, adequados ao tempo e ao lugar, em vez da aplicação de insumos externos. A diversificação genética, cultivo múltiplo/consorciado, o controle biológico de insetos/praga, o baixo nível de utilização de energia cultural industrial, biomassa viva/morta como cobertura do solo, cultivo de borda/tampão, a fixação biológica de nitrogênio, a geração de húmus por aporte energético biológico e a irrigação por microaspersão/gotejamento vistos ao longo da visita técnica só reforçam o patamar de produção sustentável que o mesmo obteve durante esses mais de 20 anos.


Relatório de viagem técnica
Mestrado Profissional em Políticas Públicas e Gestão da Educação Superior - POLEDUC/UFC. Ano: 2018
Disciplina: Agroecologia. Nota: 9.5