A carona
– Rapaz, me deixe, ômi! Não fale mais nada que não quero saber disso. Parece que anda abirobado, rapaz!
– Eu digo e digo mais! Se quiser contar vantagem eu conto as minhas. Sei que é tudo mentira o que tu fala, Zipomba do diacho! - Falou o Girleno Tesoura, na mesa do bar.
Zipomba, nada satisfeito, replicou: - Meu amigo, lhe digo uma coisa, vá pastar!
Alguns minutos se passaram, até que, enquanto jogavam sinuca, balbuciando algumas farpas entre si, algo estranho aparece.
– Boa noite. Tem água, moço?
Zipomba torceu a boca, olhando de canto de olho pro Tesoura, com olhar de tesão e quase assustado. A sobrancelha afinou.
– Moça, tem mas tá quente. – Falou o senhor atrás do balcão.
– Serve!
Ela senta no peituril e olha pro tempo, quase sem perceber os outros no bar.
– Moça, cê vem de longe ou lhe conheço de algum canto? – Puxou Zipomba, segurando o taco de sinuca, com o peito aberto.
– Eu tava andando. Vim de Campo Maior, da Pedra Quebrada, sabe onde é?
– Sei não. Mas se soubesse teria ido lhe pegar na hora! – Falou, abrindo a gargalhada.
Sentada ficou, e não falou mais nada. Zipomba parou, e percebeu que a mulher não estava pra cair em chacota.
Foram duas, três, quatro… 20 partidas. No entre e sai de uma parea com Zipomba, o Tesoura se senta no peituril quase perto da moça, que até então estava sentada, sem prosseguimento. O Dico, dono do bar, já estava escondendo o olho esbugalhado.
– A moça tá indo pra onde?
– Pra um canto que tenho casa, aqui perto. A pés é longe, por isso tô dando um descanso.
– Ah, beleza. Meu nome é Girleno, apelido de Tesoura por aqui.
– Prazer. Mundica. – Falou, quase dando a mão.
– Perdeu, disgraça! – Gritou Zipomba.
– É tua vez, cabra véi. Bora!
– Vou nada, ômi. Vou é me arribar. Já são 9 da noite, daqui pra casa é mais meia hora, vou chegar quase no galo. Nam!
– Vai timbora, caba fresco. Não aguenta uma piza do Pomba aqui! – Falou, gargalhando alto.
– Rum, deixe tudo na conta desse fulêra aí, viu seu Dico. Tome aqui 10 reais da pinga.
– Só vocês pra atentar numa quarta, hein. Se fosse o patrão, tava puto já!
– E cê pensa que amanhã não tô 4 horinha debaixo da estrelinha tirando leite dela, seu minino? – Falou, Zipomba, sempre na graça.
– Rum, hum hum. Sei não… – Falou o Dico, atrás do balcão, limpando uns copos.
Foi na hora que o Tesoura levantou e puxou o seu facão de cima do tamborete e laçou na cintura, por dentro da imbira arrochada.
– Vou-me indo, cabas.
Então, desceu uns três degraus do bar de taboca e pegou a bicicleta na moita de tucum ao lado. – Separe uma rede pro Zipomba, viu, seu Dico! – gargalhou.
O olhar da mulher no peitoril foi rasante pra cima do Tesoura, que ao apanhar a bicicleta, já sentiu uma pamonhada na lata:
– Cê me dá uma carona até a rodagem?
– Bora, pode subir. – Disse Tesoura, sem intenções.
Zipomba não se conteve.
– Eita, que é assim, né? Esse capiroto se finge de morto pra comer o cú do coveiro!
A moça nem olhou pra trás. Subiu levemente de lado na garupa da bicicleta monark vermelha e foi-se, com ele puxando marcha.
– Mas me diga, moça, eu nunca lhe vi por aqui. É a primeira vez que vem por essas bandas?
– Nada, sempre pra lá e pra cá…
– Inda mais essas hora, no mei desse tempo.
– É a melhor hora pra andar. O pensamento vai longe.
– Pois é, né. Meu camin é cortando a rodagem. Cê vai pro rumo de Batalha ou pras Barras?
– Acho que vou cortar caminho.
– Agora fiquei foi perdido. Cê me disse que tá indo pra aqui perto. Onde é mesmo sua casa? É pro rumo dos Chaga Guaxinim? Cuidado que esses doido tão dão tiro de madrugada por aí. Tão até caçando uma tal onça preta que só eles viram. Eu desconfio que é só história. Aquele povo é falador de caça. Aqui só tem dessas vermelha mesmo.
Mesmo percebendo a mudez da moça, Tesoura continuou falando, na tentativa de conter o silêncio que tomava conta.
– E cê faz o que da vida? Mundica, né? Se quiser, já lhe adianto que lá nas Paca tão precisando de lavadeira e um braço na farinhada desse mês. A diária é boa…
Foi aí que o Tesoura levou um baita susto quando, de canto de olho, percebeu que não tinha mais ninguém na garupa da bicicleta. No susto, perdeu o equilíbrio e acabou derrapando na areia do caminho estreito de terra.
– Puta que pariu, diacho foi isso! Cadê a muié?
Ele olhou em volta e nada. Como não tinha lua, ligou a lanterna e focou no chão, pra vê se via rastro. Só viu pegada de bicho grande, mas nada de gente. No aperreio, nem pensou direito.
– Cunhã doida, nam. – Ele falou assustado, não deixando também de sentir um frio no espinhaço.
Então apressou a marcha. Chegando na rodagem, viu o Luís Guaxinim, com uma 12 na mão.
– É tu, Tesoura? – Gritou ele, de longe.
– É sim, Luís.
– Conheci pela marcha. Ômi, côidado nessas moita sem lua. Tem onça e muita. Tô pra pegar aquela preta que te falei. Viu ela por aí não?
– Tava lá no Dico, sei de nada não. Tu viu alguma mulher andando por aí?Tava vindo comigo e pulou da bicicleta, bicha doida. Nem vi.
– Nada. – Resmungou, fitando em volta, tentando procurar algo.
– Pois inté. – Retrucou Tesoura, atravessando a rodagem.
– Inté.
– Girleno, aqui nesse mateiro parece tranquilo né? – Falou alguém atrás, quase matando o pobre do Tesoura de susto.
– Minha nossa senhora! Mundica, é ocê de novo? Que diacho foi isso? Cê sumiu lá atrás e aparece aqui? – Falou forte, ao mesmo tempo que parava a bicicleta.
– Calme, ômi. – Falou Mundica, amarrando o cabelo encaracolado e tirando umas areias do vestido. – Eu lhe disse que ia cortar caminho. Tô eu aqui de novo.
– E cê vai pra onde mesmo? Eu fiquei falando sozim pro vento!
– Deixe lhe explicar. Eu tenho casa, mas invadiram e tô procurando um lugar. Soube de uns pau pombo bom de sombra que tem por trás dali. É verdade?
– Cê quer construir? – Perguntou, com um olhar duvidoso.
– Sim, mas tem que ser moita de babaçu. Esse negócio de capoeira só serve pra atrair o que é de ruim.
– Moça, apareça aqui amanhã que a gente conversa. Eu já fui mateiro lá nas Paca. Mas o patrão não deixa se entrar aí desse jeito não. Tem que ouvir a prosa. Pra onde é que cê vai hoje?
– Me viro.
– Pois olhe, já vou indo. Acho que a viagem acaba aqui. Aquela casa ali é do patrão, ali já é a porteira. Inté, viu.
– Inté, Girleno.
No outro dia, cedo na lida com o leite, Tesoura percebeu o gado meio acuado. Respirando forte e juntando os bezerro pra perto, em círculo. As vacas amojadas todas ariscas, fora do costume normal. Como se estivesse algo as observando de longe.
Na noite do mesmo dia, sentado na cadeira de espaguete, no terreiro em frente à casa, lembrou da mulher do dia anterior e do que tinha combinado.
Foi quando focou em dois pontos brilhantes perto da mangueira antiga que tinha ao lado. Pensou nos cachorros, mas lembrou que o patrão tinha ido com os três pra vacinar em Batalha e estavam por lá. Silêncio absoluto.
– Meu pai do céu, é uma onça! – Sussurrou, ao mirar a lanterna.
Então se virou pra entrar na casa e pegar a espingarda. Subindo a rampa, quando voltou a luz de novo no mesmo canto, já tinha sumido. O pobre do homem gelou.
Apavorado, pensou: – Sem cachorro, uma 12 e uma lanterna. Dá pra mim não! – Então, trancou tudo ali mesmo e foi dormir.
No dia seguinte, o Luís Guaxinim apareceu no leite das 5h.
– Tesoura, ômi. Quase pego a desgramada. Foi a noite todinha! Ô bicha réa que não se amança. Escarafunchei a noite todinha e só vi um vulto e senti a inhaca!
– Rapaz, mas vim lhe dá um recado. Uma moça de preto me encontrou na rodagem agorinha, e disse que veio ontem de manhã no leite e no raiar da noite falar com contigo e nada. Disse que era melhor se encontrar lá no Dico, que de tentativa já tava cansada. Ômi, a bichinha tava com uma suvaqueira horrívi! – Falou, rindo.
Tesoura escutou, pensou, maturou. Lembrou do gado estremecido e da noite anterior, em que viu a onça preta lhe encarando. Logo veio à mente a caça desenfreada do Guaxinim e os desencontros… Em um pulso epifânico, lembrou também do rastro do bicho que tinha visto no dia da carona, após o sumiço da moça. Era de onça!
– Me diga, ela lhe conhecia? - Perguntou ao Luís.
– Rapaz eu nunca tinha visto, mas ela me chamou pelo nome Guaxinim e me encarou fundo.
Olhos esbugalhados do caboclo sentado…
Tesoura nunca mais derrubou um só pé de babaçu nem pau pombo!
– Bar do Dico nunca mais. – Fincou no peito.