Marllus
Marllus Cientista da computação, doutorando em educação, mestre em políticas públicas, professor, poeta, escritor, artista digital e aspirante a tudo que lhe der na telha.

O acaso e o ser

O acaso e o ser
O caos gestual de Pollock

A tecnologia conseguiu alterar a forma humana de pensamento e de expressão?

Vamos fazer um breve experimento mental. Imagine que você está escrevendo ou planejando um romance, e então, na construção do seu enredo, você está utilizando um assistente virtual com habilidades para auto completar palavras, possibilitando criar frases e parágrafos inteiros. Cada trecho ficcional criado por você serve como entrada para o seu assistente gerar novas frases e então, após várias rodadas, tem materializado um roteiro tornado possível por você e por um recurso tecnológico - uma espécie de outro -, definido como criador.

A pergunta que te faço é: De quem é a autoria da obra? Há mais de um(a)? Você foi levado(a) a escrever a obra por inteiro, a partir de sua forma original de pensamento, ou a atingir pontos de possibilidade, alcançados através das circunstâncias levantadas pelo assistente, durante o ato de redigir e criar a história? É uma obra sua, em concepção, ou foi levado(a) a ela, a partir de outro?

Um outro exemplo. Imagine agora você pedindo a esse assistente que te entregue uma lista de 100 contos regionalistas sobre a temática “as secas e veredas sertanejas”, bem no estilo Atalibano. Dos 100, você escolhe um, faz ou não pequenos ajustes e termina. E agora? Mudou sua concepção de autoria? Mesmo que neste exemplo você não ache que teve originalidade humana, não pode negar o fato de que o mesmo é original em concepção, apesar de o criador ter a forma mais próxima de uma enorme montanha de códigos computacionais, do que de Gil. Mas você escolheu qual iria tornar real, portanto, a sua decisão foi tão importante quanto a criação, você deve estar se perguntando. Escolher a criação e criar são ações que te levam a materializar coisas, e essas são fruto de decisões que não são 100% humanas.

Bem, espero não ter te embaralhado com estes questionamentos, mas esta é uma crítica que tenho me focado há um tempo, a partir do avanço de IAs que aparentemente conseguiram transpassar o pensamento de como estávamos acostumados a tratar a tecnologia até então.

Voltando um pouco no tempo, se você acreditar que tudo que uma máquina não humana coloca o bedelho vira algo não autêntico, então o que acha de um artigo que foi redigido em um programa de processador de texto clássico, como o LibreOffice, tendo o autor se beneficiado de recursos digitais úteis, como auto completar de palavras e alertas no instante em que se queima a ortografia? As duas circunstâncias são basicamente as mesmas, tanto em sugestão, para melhorar um texto, como do sujeito sugestivo, que continua não humano. Já em nível da sugestão e impacto no conteúdo e forma do texto, são extremamente diferentes.

Para quem está envolvido com os novos hype, descritos em diversos sites pela internet, cuja temática envolve como a evolução das IAs está trazendo uma discussão sobre o futuro dos empregos ou como ela própria irá ultrapassar a inteligência humana, talvez não consiga se perguntar sobre os pequenos automatismos já enraizados em nós. Hoje, tomando como base o atual furacão do mundo contemporâneo capitalista, por muitos é impensável viver sem um processador de texto digital e todos os seus benefícios. Até onde o ato de utilizar esses automatismos virtuais consegue estabelecer um limite de quando um objeto real não é mais criado pelo ser humano, e sim fruto dos fatores externos que dão ordem a este acaso, ou, segundo Mallarmé, do instante de ordem - possibilidade fugaz do real -, possível apenas através da fixação do acaso?

O meu questionamento gira em torno do universo da própria criação. Os dados estão lançados a esmo, então você os une, da uma pitada aqui e outra ali, e os relança (retorna-os à possibilidade) para tornar possível novamente outro real, através da ação da contingência, que sempre o transforma. A realidade nada mais é que um mar de infinitas possibilidades, sempre em transformação. Quando você fixa uma onda, consegue materializá-la temporariamente, pois as possibilidades não se acabam e os dados continuam a girar, ou nadar. Já pensou Pollock - com seu dripping - trabalhando sem a relação dialética entre o acaso e a ordem?

Tirando todo esse contexto de tecnologia computacional e indo para a seara da natureza e suas convencionais tecnologias, adaptadas pelo ser humano ao longo da história, com o fim em seu próprio benefício - e, portanto, evolução -, abro alguns questionamentos: É possível que o ser humano nunca tenha tido um momento único de fixação do real, sem utilização de mecanismos externos, que o ajudassem a torná-lo tal, e assim, dar continuidade ao porvir da possibilidade? O ser humano é um mix em essência e não existe forma de torná-lo ser puramente individual, alheio ao externo, centrado somente em si e para si mesmo? Se o acaso não escolhe, mas é escolhido, para tornar algo real, dentre infinitas possibilidades, é mais benéfico, portanto, tentar controlar todas as variáveis desse acaso ou se aliar a ele?

Termino, como terminou Haroldo de Campos: A vida é um enclave de ordem num universo fadado à morte térmica.