Que cabra bode
Bode e Cabra, com B e C maiúsculo. Essa espécie de animal, há muito, compartilha saberes, dores, vidas, ranger de dentes e riachos fúnebres. Não é de se assustar que o Bode tenha acompanhado o homem desde os 4000 anos a.c (“e lá vai pedra”). Ele sempre está lá, sempre esteve. Firme e forte.
O Bode é figura enigmática e teatral, tendo o gênio forte e disciplinado. Em sua vida moderna, sai cedinho do aprisco, não é preciso nem mandar. Volta ao cair da tarde, ou até antes, se correr risco de chuva. Talvez seja isso, essa forma doce e palatável de independência que ele tenha se preservado como és, do lado de qualquer um. Seja no intenso frio dos alpes suíços ou no insalubre sertão nordestino brasileiro.
O apreço e virilidade do Bode frente ao sofrimento é algo padecível à normalidade, simples e direto. A resiliência desta espécie é algo intangível, quase que como voar à andar. Com ele não tem drama, “nem choro, nem vela”, como dizia Nelson Gonçalves.
O homem do campo tem apreço por esse animal, tira da própria comida para dar-lhe de comer. Pode ser comida comendo comida, mas o respeito permanece na alma. Uma relação mais que sólida. E o Bode sabe disso, sabe que, ali, ele não é coadjuvante, mas que tem um papel na comunidade e na sobrevivência, que é o mentor da relação, mesmo seu ator querendo acreditar que manda. No fim, todos sabem qual a essência de cada papel. Pois, transpondo o julgo de uma trabalhadora rural do sertão pernambucano, “…não é a gente que cria eles, são eles que criam a gente…”.
O gosto é tanto que temos ao longo do tempo figuras inigualáveis, como o amante, boêmio e político Bode Ioiô, que com esta alcunha ganhou a maioria dos votos para vereador na cidade de Fortaleza, sempre bem aventurado em suas andanças célebres da praça do ferreira à praia de iracema, bebendo cachaça e sendo inspiração e amigo para grandes poetas cearenses, tendo se eternizado empalhado no museu do Ceará; o Bode Bito, sergipano cabra macho, já foi preso e solto, gostava de comer um pãozinho quente logo cedo da tarde, curtir a pracinha da igreja e, em respeito aos seus, acompanhar em marchas fúnebres pelas ruas e ainda encabeçar todo ano a procissão e o desfile de 7 de setembro na cidade de Riachão do Dantas, onde morreu de morte morrida. Era um ícone. E não menos que isso, temos várias cidades, como Batalha-PI e sua festa do Bode, a qual todo ano homenageia este, um dos principais atores deste longa metragem nordestino, clássica para a cidade. Aliás, icônica para muitas, pois Bode é rei em mais do que em 4 cantos do mundo.
Cabra Bode valente,
Homem do sertão,
Embaixo de um pé de jurema,
Descansa um vaqueirão.
De cada ruminada,
O estilo durão,
Sabe que é chegada hora,
Ele vai de encontro então.
O destino parece cruel,
Mas é viver no sertão,
Ele sabe que será lembrado,
Não só nos fatos, então.
Cabeça e chapéu quieto,
Apertando essa bota bem,
Que esse gibão tá arretado,
Pra correr o dia com o cavalo.
E quando em casa chegar,
Tem na mesa, pra ajudar, o fruto de seu ator de cena.
E ele sempre saberá,
Pois com os braços cerrados vai, pra lá e pra cá.
Imortalizado.
Uma homenagem a esta figura ilustre, alicerçada no grande sertão nordestino, onde vive, rumina, planta, alimenta e veste.
Ao co-autor da grande caatinga do dia a dia.
O Bode.
Bode na caatinga