Marllus
Marllus Cientista da computação, mestre em políticas públicas, professor, poeta, escritor, artista digital e aspirante a tudo que lhe der na telha.

O Anum como um pássaro preto

O Anum como um pássaro preto
Anum preto em grupo. Photo by ebird.

Certo dia estava eu em uma parada de ônibus, na José Bastos, olhando para cima, e vendo aquele céu azul diário, lindo, certo e sempre impossível. Logo percebo um bando de Anuns escramuçando, em um falso pau brasil no canteiro central. Aqueles movimentos pretos, aparentemente aleatórios, me fizeram lembrar que geralmente preferem ninhos coletivos, e até mesmo de outros pássaros. Vacilou, o Anum entrou!

Minha visão, apesar dos breves desvios repentinos à espera do busão, possibilitou o crescimento de um olhar que se materializou em um sentimento na ocasião. O Anum preto é o outro pássaro!

A conclusão veio primeiro que a maturação. Black Bird, The Raven, Assum preto; todos pássaros belchiorianos, em Velha roupa colorida. O que os três compartilham, afinal? Assum preto, do Gonzaga, e o Corvo, do Poe, as tradições; Black Bird, da referência aos Beatles, certamente a ‘renovação’. Mas as partes só fazem sentido se analisadas por uma visão sistêmica, intertextualizada.

As tradições sempre são confrontadas com o novo, fruto da teimosia advinda da mudança, do ato mesmo de viver. Viver é resistir às dificuldades, crescer, florescer. Se está estático, conformado, é porque morreu. E é isso que refleti sobre esses três pássaros pretos. Essa embricada relação de um momento com o seu devir. Mas ao tentar dar sentido à poética que me acometia, com os olhos fitos nas fuligens matinais, pensei - esse anum é um teimoso, rapaz! No meio ao caos, do barulho, no ar poluído, nos lugares mais improváveis, estão lá, com a família toda, junto às bicadas, pontapés, e menino novo gritando. O anum preto merece estar nesse grupo seleto, afinal.

Eu idealizei uma série, que espero materializar um dia em desenhos, com cenas que abordam os aspectos bem íntimos do ser humano e a natureza nas grandes cidades, e de como uma teimosia e um pouco de coragem pode a longe levá-lo, na tentativa de suprir uma necessidade mais ‘ancestral’. Já presenciei de tudo: Gente pescando em um breve filete de rio poluído, meninos passeando à cavalo em dunas bucólicas ao lado de prédios em concreto armado, em meio à fuligens de ônibus escolares, além de muitos outros atos de viver.

Ao pensar no Anum, certamente posso inverter a lógica de análise, e agora é a natureza - não humana - a responsável por resistir, por um ato natural, de sobrevivência, de extinto, da teimosia, nessas cidades de sentidos impossíveis. O Anum é esse representante, tanto dos seus como dos nossos. Se aglomerar nas veredas asfálticas é definitivamente um ato de resistência.

Desde o Assum, o Corvo e o Black Bird, estamos em movimento, como falaria Marx, e esse movimento, essa dialética (o materialismo dialético), nos ajuda a entender a analogia do Anum, sobre como fatos históricos levaram a natureza à teimosia, bem na minha frente. Esse ciclo de viver e pensar, esse laço, nos mostra desafios nem sempre previstos. Por isso a transformação da vida material, nesse processo dialético, define como o mundo se modifica pelo homem, e como a natureza reage a ele.

Proponho, então, uma continuação poética para os três pássaros do Belchior, que seria a inclusão de mais um: o Anum preto! Uma arte intertextual, somente entendida enquanto quatripartite. O tradicional romântico e regional; o novo modernista; e o contemporâneo ecológico.

E eu pergunto, como poeta louco,
- Anum preto, me responde, o que se faz?
- O passado é o que me fez!
- Cuidado, Anum preto, não deixe que furem seus olhos!