Marllus
Marllus Cientista da computação, mestre em políticas públicas, professor, poeta, escritor, artista digital e aspirante a tudo que lhe der na telha.

O indivíduo lírico de Gessinger em Guardas da fronteira

O indivíduo lírico de Gessinger em Guardas da fronteira
Photo by Andrik Langfield

Quando Jesus voltar e o mundo “se acabar”, será um belo dia, e portanto, o verdadeiro cristão, o leitor passivo dessa fé, terá um bom lugar, ao lado do bom pai. Mas, pra acalmá-lo logo após, ela dá um breve gole fugaz de ansiedade, com o porvir de uma vida fadada ao dinheiro duvidoso da sorte, ao dizer sequências pontuais de números que alimentam uma roda a girar, todo ‘santo’ dia. Adorno e Horkheimer foram proféticos com a indústria cultural.

Este ser, julgado como essência pela caixa falante, ouve o discurso religioso - antes de jogar o vaso nela - de que há salvação após a morte, e lá todos serão julgados pelos seus pecados, tendo a possibilidade do céu (belo dia) ou condenação eterna. Este início, no auge de uma programação ansiosa, durante a sua transição para a tentativa de resistência, é justamente a afirmação de que a igreja contém o discurso de que a essência precede a existência e, portanto, o homem deve reconhecer sua natureza, e portanto, se conformar com ela (porque a vida é assim mesmo).

Seguindo nessa transição - quando ele joga a própria tv pela janela -, começa-se a seguir conselhos existencialistas de que a “existência é quem precede a essência”. Porém, essa contradição se revela como um ponto ainda em formação, visto por meio da culpabilização à Sartre pela sua própria aposta em ser honesto e imparável. Ora, abriu-se um outro problema, onde ele se reconhece sem opções e se vê obrigado em aceitar a dita liberdade, mas culpa alguém por isso, na tentativa de parar sua angústia, agindo com má-fé. Uma conduta inautêntica - culpa do Sartre!

Real ou não, é uma conduta louvável, na tentativa de derrubar os guardas e quebrar esses muros, mesmo sabendo que uma hora cabeças vão rolar. Ele, já chapado com a própria realidade, quer, em desespero, se revoltar contra alguma coisa. Mas quem? Como? Quem é esse mito que limita o infinito, as ideias, a fantasia, a arte e que torna todo mundo em coisa-objeto, em sujeitos heterônomos, em máquinas desejantes deleuzianas? Quem é aquele que nos coloca em redomas de concreto árido, que cria inspirações de necessidades supérfluas de querer e consumo, e no final do dia, fortifica a ideia de que estamos bem protegidos se ficarmos quietos?

Como disse, é grandioso exteriorizar sentimentos críticos através do conteúdo da cultura de massa, como fez o eu lírico. Ele releu a antiga tragédia grega a partir de uma mímeses televisiva, transformando o ato de se objetificar em processo crítico a partir da dialética rebelde. Seria ele um Dândi revoltado, em transformação para um Flâneur? Adorno aplaudiria!

Somente, então, a purgação aristotélica pela tragédia - com efeito ético-político - mudará esse status quo?

O problema é que esses guardiões subverteram a catarse grega, elevando o sentimento individual de que o lazer se presta a uma busca egocêntrica, sem interações nem mediações políticas ou cognitivas, mas pela aproximação simbólica entre os consumidores que compõem o espaço ocupado. Um breve gole fictício (e narcisista) de retomada do Eu infantil, reprimido pelo mito do seu próprio cotidiano, que esvaziou sua fantasia há muito tempo.

Resgate do narcisista primário freudiano: a figura de um amante exagerado de si próprio. <br>Roger Waters no Brasil - 2018.
Resgate do narcisista primário freudiano: a figura de um amante exagerado de si próprio.
Roger Waters no Brasil - 2018.


Já não há nem homem nem natureza, mas unicamente um processo que os produz um no outro, e liga as máquinas. Há por todo o lado máquinas produtoras ou desejantes, máquinas esquizofrênicas, toda a vida genérica: eu e não-eu, exterior e interior, já nada querem dizer (DELEUZE; GUATTARI, 2004, p.8).


Reflexões sobre a letra da música Guardas da Fronteira - Engenheiros do Hawaii (1987).

Antes de atirar o vaso na tv
Eu ouvi o que ela dizia
Quando não houver mais amanhã
Será um belo dia

Estranha coisa pra se dizer
Antes de dizer os números da loteria
Mas é assim que eles fazem
E fazem muito bem
E nós não fazemos nada, nada, nada

Nada além
Além do mito
Que limita o infinito
E da cegueira
Dos guardas da fronteira

Além do mito que limita o infinito
E da cegueira
Dos guardas da fronteira

Antes de atirar minha tv pela janela
Eu ouvi o que ela dizia
Quando não houver mais ninguém
Será um belo dia

Estranha coisa pra se dizer
Antes de vender mais mercadoria
Mas é assim o mundo que nos cerca
Nos cerca muito bem
E as crises e cicatrizes
Não nos deixam ir além

Além do mito
Que limita o infinito
E da cegueira
Das barreiras das fronteiras

Além do mito
Que limita o infinito
E da cegueira
Das barreiras das fronteiras
Das barreiras das fronteiras

Foi então que eu resolvi jogar
As cartas na mesa e o vaso pela janela
Só pra ver o que acontece na vida
Quando alguém faz o que quer com ela

Acontece que eu não tenho escolha
Por isso mesmo é que eu sou livre
Não sou eu o mentiroso
Foi Sartre quem escreveu o livro
Não sou afim de violência
Mas paciência tem limite

Além do mito que limita o infinito
Além do dia-a-dia
Que esvazia a fantasia
Além do mito que limita o infinito
Além do dia-a-dia
Que esvazia a fantasia
Que esvazia a fantasia
Que esvazia a fantasia
É que esvazia a fantasia
Que esvazia a fantasia
Ah, que esvazia a fantasia
Esvazia a fantasia
Ah, que esvazia a fantasia
Que esvazia a fantasia
Ah, que esvazia a fantasia
Esvazia, esvazia a fantasia