Memórias de quase outra vida - Amanhecer
Abro os olhos, no ápice daquele levantar arriscado, com medo de que a frieza não me deixe sair do estado letárgico. A bexiga trincando, como se espremesse um limão de dentro da boca de um bode. Fiquei me perguntando porque sempre é assim, aqui no catombo. Sempre às 5h.
Ora, mas aqui não tem aporrinhação de vestir farda 6h e pegar o beco pra um pátio de remelentos cantando hino desapaixonado. Pelo contrário, quem faz a próxima cena sou eu, enquanto listo os afazeres já nos sonhos.
E que medo é esse de levantar e deixar rolar lá fora? Olho pra cima e os morcegos ainda esvoaçam; ainda hoje não sei, mas desconfio dos penicos pelo salão. Deixo passar essa vez, então durmo mais uns minutos, em alerta.
Depois com a neblina já por cima do queixo, ministro uma visão, fitagem, com os braços encostados no peitoril e atento ao horizonte esfumaçado. Respiro, antes mesmo de começar os primeiros piados do dia, enquanto o sol chega de mansinho, gentil e ressaqueado.
Aí o vulto aparece quase num susto, passo firme. É o Bodé! E vem na trota, que hoje tá aperreado, só pode. Me dá um ‘hrrr rpz’ logo cedo, indicando que já tá na peleja. Isso enquanto curva pro curral. Corro dando a volta.
Pego uma caneca branca gelo, daquelas de toda casa, e arrocho na corrida. Chego lá, mas o parecer já tinha sido dado e o leite espichava, no mesmo passo trotador.
Receita: 2 dedim de açúcar no fundo e 10 puxada na teta. É o famoso mugido. Amornado em brasa natural, não tem melhor pra começar a lida.
Lá vem eu com um balde, desses de 8 litros, no fio pra derramar. É pra Claudene coar e ferver, que já tinha levantado a essa altura, donde subia um cheiro de café.
Mas no outro pé já pego o copo de alumínio, boca larga, e encho do pote, pra mode limpar a dentuça e de fato acordar pra cuspir. Na volta tomo um golpe de café, que já tá na mesa de pequizeiro, na fria ilusão de que foi só isso que me fez começar o dia, desde às 5h em claro. É o costume pra engatar uma segunda marcha, talvez.
Enquanto penso sobre isso vou correndo e acompanho o vaqueiro, que já tá na vereda pra cortar as cana. O cavalo é só mais tarde, caminho, quase perguntando, pulando dos carrapicho. As palavras são mais pensadas por aqui, mas não deixam de ser diálogos. Isso enquanto me entrega as varetas pra dentro do jacá, ao cortar freneticamente o restante da grama colonial pro gado, que urge de longe, só do cheiro. Eita que não deu nem 7h ainda!
Daí subimos pro motor, lugar também da farinhada, e donde também meus pensamentos são invadidos pelo cheiro da casca da mandioca caindo sobre nossos pés, enquanto jogamos palavras à cantoria - minhas lágrimas de antigos junhos são legítimas e silenciosas!
E aí a máquina esbraveja, se debatendo enquanto engole canas tão doces quanto o seu fervilhão ao vomitar a massa verde logo em seguida. O gado essa hora revira os olhos. Quem ainda estava dormindo já sabe que de agora não passa. Juntemos a massa no jacá e lá voltamos na subida.
Na agonia de entrar eu pulei, não esperando ele abrir o curral, e no vacilo a rês quase me pega, louca pelo volumoso que já está ali na espreita. Mas depois de uns leves açoites, amarro o jacá com um pedaço de embira, rente ao chão no curral, pra não correr o risco de virar e aí a soltamos. É uma alegria furiosa pra cima da forragem.
Vou pra um lado e ele pra outro, e no desencontro, sabemos que mais tarde tem mais lida. Inté, Bodé! Agora dito.
Enquanto entro, me entrego no bom dia aos que já estavam na mesa, no café. Sinto o cheiro do cuscuz de pano se abrindo pelas mãos de Claudene. Enquanto olho pra ela, um breve sorriso, apontando para os ovos da poedeira. Ela me pergunta, via pensamento, se aceito. Digo um ‘opa’. Ela sabe.
Na cabeceira da mesa ele está lá, com seus checklists mentais sobre a lidas próximas, percebidos por um olhar distante enquanto dá um gole. O magarefe que vem ver o gado, a quinta que precisa ser plantada, o que fazer com aquela vaca cocha que já tá amojada, será que o arroz já secou, e a leucena, se o gado vai pro mimoso esse ano, quantos perus foram encomendados pelo Seu Benedito da finada Judith…
Bençã, vô.
Deus lhe faça feliz!