Atualizações Físico-Filosóficas da Ontologia Imanente

Por séculos, a ciência e a filosofia ocidentais operaram sob o pressuposto de um mundo transcendente, onde as leis e as realidades essenciais pairavam acima ou fora dos fenômenos concretos. No entanto, o advento da física moderna, especialmente a mecânica quântica e a relatividade, forçou um retorno a uma Filosofia da Imanência, onde a realidade é vista como brotando de dentro, em um fluxo contínuo de criação e diferença. A primeira operando no âmbito técnico científico e rigor matemático, a segunda, no rigor intuitivo, lógico argumentativo.
No seio da filosofia, a ideia da imanência remonta à antiguidade (como no devir de Heráclito e no materialismo dos Estoicos), mas ganha sua expressão plena e rigorosa com Baruch Spinoza. Pulando alguns séculos, com Nietzsche, Foucault, e desembocando em Gilles Deleuze e Félix Guattari, a busca pela imanência continua sendo a “questão candente de toda a filosofia”. Essa perspectiva culmina na “fórmula mágica” de que PLURALISMO = MONISMO, sugerindo que a multiplicidade não está separada de um Ser único, mas é a sua própria expressão. O conceito de imanência absoluta é definido, enfim, como “UMA VIDA”.
Em vez de uma essência fixa (ontologia da essência), a ontologia imanente é uma ontologia da diferença e do sentido. O ser, em Deleuze, não é fundado na identidade, mas sim na intimamente relacionado à diferença, sendo ela própria fundacional e equiparada ao próprio devir (o ato de se tornar). A ontologia da imanência, portanto, é uma ontologia do devir.
A substância, desde Spinoza, é imanente e unívoca, ou seja, expressa-se por atributos e modos, mas neles permanece, sendo sua própria vida (natura naturans). O campo transcendental, nesse contexto, é purgado de toda consciência ou sujeito, sendo impessoal e a-subjetivo, e essa condição é a própria imanência.
Nesse ínterim, a história da ciência não desenhou uma linha reta, mas foi palco de um conflito ontológico fundamental sobre a natureza do espaço. Durante o apogeu da física clássica, a visão que prevaleceu foi a transcendente: para Isaac Newton, o espaço era um “sensorium de Deus”, um recipiente absoluto e imutável, uma superestrutura vazia que existia antes e independentemente dos corpos.
Contrapondo-se a essa hegemonia, Gottfried Leibniz sustentava uma visão, digamos pré imanente e relacional - mesmo o sistema leibniziano sendo claramente teísta e fortemente transcendental -, argumentando que o espaço não é uma entidade em si, mas a ordem de coexistência dos corpos; ou seja, sem objetos para se relacionarem, não haveria espaço. Embora a física newtoniana tenha dominado o pensamento por séculos, a intuição de Leibniz encontrou sua redenção matemática no século XIX com a Geometria de Riemann (desenvolvida por Georg Bernhard Riemann).
Essa nova geometria forneceu a base para a Teoria da Relatividade Geral de Einstein, operando uma verdadeira revolução: o espaço (agora espaço-tempo) deixa de ser um palco passivo e externo (euclidiano/newtoniano) para se tornar uma estrutura dinâmica que emerge internamente. No universo de Einstein, a geometria se deforma e curva em resposta à presença da massa e da energia. Há uma vitória tardia da imanência: o espaço, ao invés de ser mais um absoluto transcendente, é uma realidade moldada relacionalmente “de dentro para fora”, um conceito que reverberou profundamente no pensamento filosófico de Henri Bergson e Gilles Deleuze, ao tratarem das multiplicidades.
Espaços possíveis da Geometria DIferencial
Deleuze não possuía o rigor técnico de um matemático, mas compreendia perfeitamente a intuição revolucionária por trás da geometria de Riemann: o conceito de que um espaço (uma “variedade” ou “multiplicidade”) pode ser definido intrinsecamente, a partir de suas próprias regras e conexões internas, sem necessidade de ser encaixado ou referenciado a um espaço externo maior (como o espaço tridimensional euclidiano). Ele captou que isso representava um novo conceito filosófico de espaço — um espaço que surge de suas relações internas, não de uma estrutura transcendente — e é essa ideia de multiplicidade auto-constituída e imanente, a qual incorporou profundamente em sua filosofia.
Continuando com as influências, no séc. XX, o físico David Bohm introduziu o conceito de Holomovimento para descrever uma totalidade dinâmica e indivisível que subjaz a toda a realidade. O Holomovimento integra duas ideias cruciais: totalidade indivisível e processo constante, sustentando que tudo no universo está interconectado e em movimento contínuo.
Bohm distinguiu duas ordens: a ordem implícita (envolvida), que é a estrutura oculta e geradora da realidade, e a ordem explícita (desdobrada), que são os fenômenos observáveis. O Holomovimento é o fundamento de onde ambas as ordens surgem. Crucialmente, o domínio das ordens implícitas não é transcendente, mas imanente à ordem explícita.
Esse entendimento das ordens é crucial para o conceito de Holismo Quântico (Holografia Quântica), o qual se refere Chengxin Pan, onde as partículas são vistas como “estados quantizados de um campo que se estende a todo o espaço”. O todo é irredutível às partes, e as partes só existem em relação; o todo está nas partes e as partes emergem do todo (coemergência).
Bohm concluiu que o significado (que Deleuze nomearia de Sentido) é mais fundamental do que a física da energia ou da matéria. O Holomovimento, em sua totalidade indivisível, pode ser entendido como o contexto da consciência universal e do significado, que organiza tudo.
Potências, não partículas
A física clássica de Newton baseava-se em “pura atualidade”, descrevendo sistemas por propriedades reais e definidas (o reino atual) e eliminando o reino do potencial. A Mecânica Quântica (MQ), no entanto, introduziu a necessidade de um reino potencial.
Werner Heisenberg recorreu ao conceito aristotélico de potentia para interpretar a função de onda quântica, definindo-a como uma tendência objetiva, algo que se encontra entre o evento em si e a realidade.
O Realismo da Potencialidade, perspectiva ontológica criada por Flávio Del Santo e Nicolas Gisin em 2023, propõe uma interpretação aplicável tanto à física clássica quanto à quântica que busca reconciliar o realismo com o indeterminismo fundamental. A tese central é que as potencialidades — entendidas como tendências intrínsecas e objetivas de atualização — são elementos tão reais quanto as propriedades atuais dos objetos. Ao definir os sistemas físicos por suas propensões de vir-a-ser (e não apenas pelo que já são), eles argumentam que problemas conceituais, como o da medição, deixam de ser exclusivos da mecânica quântica e passam a ser compreendidos como desafios comuns a qualquer teoria física indeterminista.
Sem dúvidas isso se alinha à Vontade de Potência, na qual já escrevera Nietzsche. Para ele, ela não é unitária nem está fora do mundo; ela é múltipla, relacional e imanente, manifestando-se como efetivação real. Assim, a Vontade de Potência é sempre plural, configurando a realidade como uma tensão e luta constante entre forças em movimento.
Em trabalhos contemporâneos, a teoria quântica é compreendida através de uma dualidade ontológica entre a res extensa (a substância material cartesiana) e a res potentia (a potencialidade segundo Heisenberg). Ou seja, ao invés de pensar um dualismo de substâncias separadas e excludentes — evitando assim o problema mente-corpo introduzido por Descartes —, afirmar realidades que se implicam mutuamente. Essa abordagem oferece uma explicação natural para perplexidades quânticas como a não-localidade, o emaranhamento e o colapso da função de onda, sugerindo a necessidade de reavaliar nossas concepções sobre a natureza do espaço e do tempo.
Ao contrário da potencialidade irracional (que é teleológica e predeterminada a um único fim, como uma semente), a Potencialidade Racional - conceito aristotélico recuperado por Christian de Ronde para fundamentar a ontologia da Mecânica Quântica -, é uma capacidade real e independente do reino atual, capaz de gerar efeitos contrários e sustentar a contradição de “ser e não-ser” simultaneamente. Esse conceito é a base para a noção de Força Imanente, do mesmo autor, descrevendo uma realidade que existe plenamente no domínio potencial, regida pelo que ele chama de Causa Imanente, sem depender de sua atualização ou manifestação concreta para ser considerada real.
A 'coisa' extensa e a 'coisa' potência.
Partindo de uma perspectiva, segundo o próprio autor, neo-spinozista, ele defende que a intensidade dessa força é medida pela Potentia, que foge da lógica binária clássica (existir ou não existir) para operar em um intervalo de intensidades contínuas. Quando um evento finalmente ocorre ou é medido — o que chamamos de Atualização —, ele é apenas uma expressão momentânea que não destrói nem altera o vasto reservatório de possibilidades latentes, que ele chama de Estado Potencial da Situação (Potential State of Affairs - PSA). Operando pela lógica da Causa Imanente, a potência permanece intacta em seu próprio reino mesmo enquanto gera efeitos visíveis, o que torna a nossa realidade atual apenas uma janela parcial e limitada (epistêmica) para vislumbrar a verdadeira densidade ontológica do mundo potencial.
Intra-ação, não interação
A física e filósofa Karen Barad, com seu Realismo Agencial, também propõe uma perspectiva ontológica que desafia a noção de entidades preexistentes. Para Barad, a matéria não é uma substância fixa, mas sim um “fazer”, um processo de “intra-ação iterativa” que consolida a agência.
A noção central que a autora nos trás é da Intra-ação (em contraste com a interação, que pressupõe entidades independentes pré-existentes, os relata),. Os fenômenos são definidos como relações ontologicamente primitivas, ou seja, eles são a “inseparabilidade ontológica de ‘componentes’” que agencialmente interagem. Eles são seres materiais reais.
Nessa “onto-epistemologia” — que funde ser, saber e ética —, não existem observadores externos; as próprias mentes emergem dessas intra-ações materiais. Consequentemente, a objetividade deixa de ser um distanciamento neutro para se tornar uma questão de responsabilidade: ao realizar um “corte agencial” para produzir conhecimento, estamos participando ativamente da materialização do mundo. Visto que cortes diferentes criam realidades diferentes, a ética torna-se intrínseca à própria estrutura do universo, exigindo uma profunda responsabilidade pelas distinções que fazemos e pelo devir que ajudamos a concretizar.
Avaliação para expansão da Potência, não do valor
Marcos Lima introduz o conceito de Avaliação Trágica ou Diferencial, situando-a no plano de imanência e desafiando a primazia das avaliações tradicionais, que se limitam a atribuir valores morais ou utilitários. Esta abordagem dialoga profundamente com o realismo da potencialidade e a causa imanente, já comentados em parágrafos anteriores: para ambos, a realidade fundamental não se resume às “propriedades atuais” (aquilo que já se concretizou), mas é constituída também por potencialidades intrínsecas, ou seja, propensões reais e objetivas.
Sob essa ótica, a avaliação se manifesta como um ato vital, um gesto de amor à Vida imanente, tomada aqui como critério supremo. O imperativo central é a afirmação e expansão da potência do vivente. Encontra-se aqui um paralelo estrutural com a Força Imanente descrita pelo físico Christian de Ronde. Essa força distingue-se por sua autonomia, operando sob a lógica de uma potencialidade racional que existe por si mesma, independentemente de sua atualização futura ou manifestação no reino atual.
A sustentação dessa avaliação exige uma estrutura lógica capaz de suportar o paradoxo da contradição, papel que pode ser ocupado pela Lógica Paraconsistente. O lógico brasileiro Newton da Costa, em colaboração com De Ronde, já propôs uma leitura das superposições físicas onde a contradição é um elemento-chave da estrutura formal da teoria “desde o início”. Na realidade fundamental da potência, segundo eles, propriedades contraditórias coexistem; A e não-A habitam o mesmo espaço virtual sem se anularem. Aqui eu discuto mais sobre a aplicação da lógica paraconsistente em estudos em Avaliação Educacional, se quiser mais detalhes.
Porém, uma questão físico-filosófica fundamental que surge é sobre a natureza do acesso ao virtual: se a nossa experiência concreta nos entrega apenas a face atualizada e não-contraditória (o resultado), como podemos operar sobre a plenitude da potência contraditória sem colapsá-la, no próprio ato de avaliar, em uma mera atualidade estática e excludente?
Lima tenta resolver essa problemática na sua filosofia diferencial com o conceito de pericorpório — o espaço fronteiriço entre o virtual e o atual, o domínio intermediário e dinâmico onde a potência da Vida se expressa — e funciona como uma composição dinâmica de forças que navegam na contradição do vivido. Então, ao invés de atacar o problema de como operar uma avaliação no virtual, o autor deslocou a potência para essa zona que gera sentido pelo ato avaliativo. Aqui há um claro paralelo com a Causa Imanente, pois a potência permanece plena em seu próprio reino, mesmo ao produzir efeitos visíveis, e é o local fundamental onde ocorre a avaliação imanente e a constituição dos sentidos. Assim, posso argumentar que a Avaliação Diferencial é intrinsecamente Paraconsistente .
A Avaliação Diferencial Paraconsistente.
A analogia é pensar a realidade como um bolo. O pericorpório seria a camada de interface onde os reinos virtual (os ingredientes, como a potencialidade) e atual (o bolo assado, o que é observável) se misturam e se cozinham, gerando o sabor e a textura (o sentido e a potência), que não são apenas a soma das partes, mas uma nova composição que está sempre em processo de devir. Segundo o mesmo autor, o pericorpório é o espaço entre as realidades virtual (incorpórea) e atual (corpórea), onde a avaliação opera.
A natureza do sentido perspéctico, portanto, é o efeito da multiplicidade e dos fluxos de signos que, por sua vez, têm a capacidade de criar novas relações e possibilidades e a função de produzir efeitos e conexões. Em outras palavras, são os sentidos avaliativos, os criados no ato de avaliar.
Esses sentidos limanianos, fundamentais em sua filosofia da avaliação, abraça, portanto, a lógica do princípio da complementaridade de Bohr, onde verdades opostas podem ser virtualmente verdadeiras ao mesmo tempo. Incorpora-se, finalmente, a profundidade da imanência e a riqueza da contradição viva, rompendo com as limitações da lógica clássica da filosofia representacional.
Desvelando o Real, não o objeto
A física e a filosofia nunca foram territórios isolados, mas sim faces complementares de uma mesma inquietação diante do cosmos. Elas estão profundamente interligadas na tarefa de decifrar o mundo: de um lado, a física mobiliza um complexo ferramental técnico, lógico e matemático em busca das bases fundamentais para o entendimento dos fenômenos do real; do outro, a filosofia aplica um rigor argumentativo cirúrgico na descrição e conceituação dessa mesma realidade. Por séculos, ambas as disciplinas operaram sob o pressuposto de um mundo transcendente, onde as leis essenciais pairavam acima da matéria. No entanto, a história forçou uma reorientação drástica, exigindo o retorno a uma Filosofia da Imanência, onde a realidade é compreendida não como algo que desce de cima, mas que brota de dentro, em um fluxo contínuo de criação e diferença.
Ao traçarmos esse arco que vai da curvatura do espaço de Riemann à avaliação no pericorpório de Lima, torna-se evidente que a realidade não é um cenário estático, mas um campo de forças onde ocorre a incessante dança do virtual e o atual. A física nos ofereceu a gramática da potencialidade e da não-localidade, enquanto a filosofia da diferença nos deu uma ética imanente, que se opõe a julgamentos morais dualistas, valorizando a criação de novas possibilidades de vida, que maximizem a potência de pensar e de agir nos encontros estabelecidos sem que se suprassuma (Aufheben em Hegel) os outros. Aceitar que a Potência, a Intra-ação e a Imanência são constituintes do real exige, portanto, que abandonemos a postura de espectadores neutros que apenas “coletam dados” de um mundo supostamente acabado. Se a avaliação é um ato de criação que expande a vida, o próprio ato de pesquisar não pode ser menos que isso.
Essa revolução ontológica impõe um desafio urgente ao como produzimos conhecimento. Se o mundo é feito de emaranhamentos e devir, nossos métodos tradicionais — pautados na representação fixa e na separação sujeito-objeto — tornam-se ferramentas rombudas, incapazes de tocar a delicadeza do virtual. É nessa fenda que florescem os Novos Empirismos e a Pesquisa Pós-Qualitativa. Eles surgem como a resposta metodológica necessária a esse grito da imanência: modos de investigar que não buscam capturar ou congelar a realidade, mas sim experimentar com ela, cartografando as forças do “ainda não” e assumindo o risco de pesquisar de dentro do próprio turbilhão da criação.
A virada ontológica, a Pesquisa Pós-Qualitativa e os Novos Empirismos serão tema de um próximo post aqui no blog. Acompanhem.