Marllus
Marllus Cientista da computação, mestre em políticas públicas, professor, poeta, escritor, artista digital e aspirante a tudo que lhe der na telha.

IA banalizando a arte?

IA banalizando a arte?
IA Imagen - Google.

“Estou vendo dezenas de discussões surgirem no reddit e em outros lugares com artistas e ilustradores preocupados e comentando sobre o impacto e se eles continuarão sendo necessários no futuro próximo. Alguns retrucam “é a democratização da arte: todos seremos artistas e ilustradores, assim como todos viramos fotógrafos com a câmera digital” Dessa vez é mais radical pela simplicidade e qualidade do resultado, nem precisaremos preparar a foto, é só pedir pra máquina e o Dall-e 2 (ou o Imagen etc) faz em um segundo.”
Membro de um grupo sobre Machine Learning BR


Considerações sobre comentário

Na verdade existe uma discussão muito mais profunda sobre a arte, que vai além do aspecto técnico: do sentido, da reflexão, da fruição e da estética (na filosofia do termo).

Assim como as câmeras digitais não substituíram a expressão da arte que capturava a realidade objetiva, por meio da subjetividade dos atores humanos - como revolucionaram os impressionistas franceses -, IA que gera imagem a partir de textos é uma produtora técnica de conteúdo, não a artista por si só, com um arcabouço contextual e de sentido por trás da sua criação.

A categoria de comparação dessas IAs deve ser colocada muito mais para o aspecto técnico ou do ato de expressar, quantificado, o que se quer em imagem, sem ter necessariamente uma habilidade manual para isso. Claro, a relação da arte como expressão surgiu com a arte moderna e ainda hoje é uma característica vigente e endossada por muitas instituições e críticos de arte. Ou seja, não é preciso ser desenhista para ser considerado artista. A pintura ‘Quadrado preto sobre fundo branco’ (1915), de Malevich, vanguardista russo; as obras com action painting de Pollock ou A Fonte conceitual de Duchamp são exemplos clássicos. É disso que eu falo.

Mas não é um assunto que se encerra, e aqui eu trouxe somente uma visão. Existe todo um leque de bases epistemológicas sobre o que é de fato arte, além das teorias estéticas que corroboram e justificam o uso de ferramentas autônomas no fazer artístico. Eu mesmo, com base no acaso de Mallarmé, na minha obra AntologIA Poética, contraceno com essa epistemologia.

Pedro Barbosa, escritor português, escreveu muitos ensaios sobre o tema, denominando a sua produção literária experimental como ciberliteratura, na qual utilizava algoritmos para produzir poemas, a mesma base que temos hoje com os modelos GPT. Isso nos anos 70!

Nesse contexto, ele separa os objetos estéticos em 3: os naturais, criados espontaneamente pela natureza, ou seja Objeto→sujeito; os humanos, ou obras de arte, que são obras constituídas com intencionalidade (ex: um quadro pintado pelo homem); e os estéticos artificiais, e aqui entram as imagens geradas pelas IAs DALL-E 2 e Imagen. Porém, ele classifica o produto de uma máquina autônoma como estético artificial porque não houve intencionalidade na produção da ‘coisa’ pela máquina, mas sim de um humano que acionou-a para fazer tal coisa. Neste sentido, é o modelo gerador resultante do treinamento da IA pelo emissor (artista programador) que pode ser classificado como a obra de arte em si, e o produto resultante dele (a imagem - aparentemente a obra) teria quase o mesmo status estético de uma pedra em formato de coração encontrada a esmo na praia. ‘Quase’, porque houve algum fator humano por trás da geração do objeto final (a imagem), diferentemente da sua forma natural, que é de pura significação.

Seria esta uma pintura perdida de Monet, nos áureos do impressionismo?
Seria esta uma pintura perdida de Monet, nos áureos do impressionismo?

Partindo dessa mesma teoria estética do autor português, o artificialismo da máquina só vai até onde cabe o seu contexto. Liberdade diante dos fatores é uma liberdade podada, sem consciência, sem intenção humana.

A máquina, cumprindo um conjunto de procedimentos linguísticos meticulosos e precisos, organizará o material: o homem, pela leitura, lhe conferirá o significado. Feito a partir de significantes, o texto artificial, será assim sempre um texto opaco: só o acto de leitura lhe poderá, ou não, atribuir uma significação; e consoante ele se prese ou se recuse, a sua opacidade se transmudará, ou não, em provisória transparência. […] Desde modo o texto artificial porá a tônica sobre a liberdade interpretativa do receptor.

No sentido em que Umberto Eco interpreta toda a obra de arte como sendo uma obra aberta, isto é, requerendo sempre uma maior ou menor atividade mental por parte do fruidor para a completar, o texto só pois a dentro de uma poética da abertura deverá ser encarado.

Pedro Barbosa. Em direcção ao texto artificial (1979); Arquivo Digital da PO.EX

Então, o assunto ainda não está acabado, e talvez nunca estará.